segunda-feira, 25 de julho de 2011

Lara (ou A Chave na Porta)


Lara tentava se abrir para as palavras que fluíam dentro de si. Era a corrente furiosa de uma cachoeira, algo que lhe feria e curava, ao mesmo tempo. Sentia enjôo de frases que nasciam independentes dela; sentia o corpo usado por fantasmas esquizofrênicos que vomitavam verdades enlouquecidas em sua mente.

As velhas vozes companheiras. Já havia se acostumado com aquela feira livre em sua cabeça. A gritaria já era quase um sussurro. E Lara já entendia que sua sanidade era fruto dos espectros que lhe sopravam ao ouvido. Não importava, aquilo era parte dela, havia a aceitação de tratar o externo como inerente, mas ainda se perturbava com a fúria das palavras que a invadiam. Doía esperar passar o ímpeto louco de pegar lápis e papel, como se a sabedoria fosse escoar de si própria e precisasse registrá-la, para se decifrar depois.

Estava deitada. Nua. A luz da televisão incidindo em sua pele, mas Lara olhava para o rosto adormecido em seu peito. Olhava para aquela mulher repousando a feminilidade em seu corpo. Aquela mulher linda, por quem possuía um afeto que não sabe descrever, vestindo apenas a própria pele, a coberta marcando as curvas de ambas. Então, Lara percebeu a si própria, também, como mulher. Observava a si e à mistura aquarelada das cores das peles que se entrelaçavam.

Lara a afagava os cabelos e olhava seus olhos fechados. Ela adorava aqueles olhos. Sua mulher jazia em sua pele, com suspiros de sono pesado: Tão linda, tão mulher... tão frágil...

E tudo ficou claro. A chave na porta. Lara pôde se abrir ao perceber o porquê de não se entender como mulher. Entendam que ela sabia de sua estrutura física, dos pequenos seios que brotavam por dentro de suas blusas, e dos quadris que desabrochavam por dentro dos jeans. Lara se sabia mulher, mas não se entendia assim. Era a fragilidade. Ela a havia perdido junto com a inocência. E endureceu. Lara acreditara, em um passado não tão recente, que precisava de um homem para lhe proteger. Foi a última vez que se sentiu porcelana, ou argila, e pensou que quebraria. Ela, não só, já não sabia ser frágil, como não o desejava.

Lara queria entender de delicadeza, e, de certa forma, até entendia. A mulher que se entregava a Morfeu em sua pele era a prova disso. Seu dever era preservar o direito das outras serem frágeis. Deveria lhes guardar a inocência que lhes fazia dançar balé enquanto se moviam. E os sorrisos mais leves que plumas.

A chave na porta. Lara chorou e sorriu. Se aconchegou no corpo já adormecido, abandonou as palavras até a manhã seguinte, e foi feliz. Sua dama seria dama e, ela, qualquer coisa que merecesse aquele afeto, de nuvens finas, em um dia ensolarado.